sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Triste visita

    Enquanto desço a rampa de entrada, rodeado de macas, cadeiras de roda e enfermos das mais variadas doenças, olho pro céu cinza que despeja uma chuva fina e gelada, em contraste com o calor abafado que aos poucos cede lugar ao agradável frio fora de época. Sinto grudado na minha pele o cheiro desagradável de formol, de remédio, de hospital. Detesto hospitais. Detesto o cheiro de hospital, o barulho das máquinas trabalhando para estender o prazo final dos acamados, os gemidos, o choro dos parentes, o ar triste e dolorido de quem perde aquele que ama frente ao olhar duro e resignado, às vezes frio, dos médicos, acostumados a esta rotina que particularmente, me enlouqueceria, caso tivesse eu de vivê-la diariamente. Acabou a parca meia hora de visita na UTI, tenho de voltar ao trabalho.
    O fone nos ouvidos enquanto volto ao escritório, quase a ponto de me fazer doer a cabeça de tão alto o som, não impede que meu coração se encha de tristeza e mágoa. As pessoas que passam, algumas me atirando um olhar vazio, também não impedem que eu comece a chorar na rua mesmo. Tento me controlar, afinal sou homem, não posso chorar. Mas é difícil, ainda mais quando recordo a cena que presenciei há pouco mais de cinco minutos. Um homem forte, 40 anos mal completados de uma vida ferrada, preso a no mínimo uns quatro aparelhos. Um cara que me viu crescer, me carregou na garupa, que tentou mais de uma vez me ensinar a gostar de futebol, um cara com o qual mais tarde fui em festas, com o qual bebi mais de uma cerva, com o qual aprendi a “cair em cima das guriazinhas”. Sempre nos demos muito bem, e não era para menos, éramos, cada um em sua geração, as “ovelhas negras”, os rebeldes. O tio predileto, o tio doido... O tio da festa... A ultima oportunidade em que convivi com ele, nas minhas férias de 2006, varamos o interior do estado numa kombi guiada entre conversas a gritos acima do barulho do motor, entregando mercadorias em mercados do século 19... Era o trampo dele, era meu divertimento. Depois disso casei, perdi contato com o cara e hoje, depois de quase quatro anos, o reencontrei. Com tubos rasgando sua boca, respirando de forma mecânica e agoniante, em coma induzido para evitar as atrozes dores que sente, inchado, gemendo e nada parecido com o homem que era na minha infância. Abracei minha mãe chorosa na entrada do quarto, seu irmão lutando pela vida na cama ao lado, e não consegui dizer muita coisa, a voz entalada como uma maçã inteira presa na garganta. Nunca me acostumo a isso. Já perdi muita gente amada. Pai, irmã, avô, e mesmo assim, a doença e a proximidade da morte de quem amamos destroça o coração. Sempre.
    Depois da visita breve, na qual mal me aproximei de meu tiozão para não cair no pranto, despedi-me de minha mãe e já no escritório, me tranquei no banheiro, e acima da tristeza que sentia na hora em que o via naquele estado, senti um misto de revolta e raiva. Contra ele. A situação, por mais triste, inegavelmente é culpa dele. Da sociedade em partes pequenas, mas a maior parte, dele. Drogas. Álcool. Cigarro. Vida desregrada de quem pouco se lixa para o futuro. Usamos juntos coisas que poderiam ter matado a nós dois. Parei antes, cresci antes quem sabe... Ele não teve a mesma força. Se faltaram motivos não sei. Só sei que seu pâncreas literalmente estourou dentro dele. Seus rins tiveram de ser ressucitados mais de duas vezes desde que entrou em coma e seus pulmões funcionam mecanicamente, aos trancos, e caso sair vivo dessa situação, haverão seqüelas. Várias seqüelas. E sei que sente dores inimagináveis, a ponto de que nem induzido ao coma profundo, consegue parar de senti-las. E meu tiozão, malandro, pegador, jogador amador em campos de sítios, que amava correr na grama enlameada depois da chuva atrás de uma bola, tem hoje poucas chances de sobreviver e mesmo que consiga, terá a vida que nunca quis, a vida chata de um doente.   
    Não faço campanha anti-drogas, não sou exemplo para ninguém, não quero que meu tio seja mártir de uma causa pela qual tanta gente morreu sem precisar. Afinal, é só mais um irresponsável pagando por atos irresponsáveis. Só queria contar para vocês que eu tive um tio, quase um irmão, que me carregou na garupa quando criança e me levou pra passear, me ensinou a “caçar”, riu comigo, me ensinou a curtir Legião, fez festas e idiotisses ao meu lado. E hoje está semimorto, com a garganta rasgada para permitir a entrada de uma sonda, pagando o caro preço de uma vida curtida acompanhado de cigarros, álcool e cocaína. Sabem o que minha família fez para ajudá-lo quando estava sadio? Quase nada. Sabem o que fazem agora? Vigílias, orações, doam noites ao lado de sua cama, choram e desesperam-se. E isso adianta porcaria nenhuma.

Diego Schirmer

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