quarta-feira, 2 de junho de 2010

Desabafo de um peito gelado - Outra autocrítica...

    Sempre amei o inverno. Quando criança adorava ver a geada branca sobre a grama, que praticamente partia-se congelada ao pisarmos nela. Achava o máximo os “caras importantes”, com seus sobretudos e maletas, gostava do inverno pelo fato de as pessoas vestirem-se bem, achava bonito as mulheres com casacos enormes, gostava acima de tudo do chocolate quente, do pinhão, de certas comidas gostosas que só o inverno permitia... Sentia-me ótimo aos domingos de manhã, a preguiça morna e aconchegante que minhas cobertas me faziam sentir, do pão caseiro quente, com a manteiga a derreter, de passar a tarde dormitando no sofá. Gostava até mesmo de ir para a escola nesses dias, mesmo com chuva, falar bobagens com os amigos, ler durante a aula e embranquecer os cabelos dos professores. Havia dias em que o termômetro marcava graus negativos, como é comum aqui no sul, e lá ia eu, cheio de roupas quentes, assoprando vapor e pulando sobre as poças de água gelada.
    Foi num desses dias, de frio extremo, vento cortante e garoa gelada, a caminho da escola, que vi muito deste amor morrer. Foi num destes dias que descobri uma das maiores crueldades da vida e perdi, inconscientemente, uma parte grande de minha boba inocência infantil. Foi num destes dias que um dos espinhos que carrego até hoje se cravou em mim e, contra a minha vontade, os invernos nunca mais foram os mesmos. A partir de então, uma culpa que tento disfarçar se apossa de mim sempre que sinto prazer no frio.
    Ele estava curvado, tentando de forma patética e inútil proteger-se do vento que o chicoteava forte, com água suja e gelada a escorrer de seus cabelos desgrenhados, pisando dolorosamente no chão, com apenas um dos pés calçados. Ele estava visivelmente embriagado, falando sozinho, amaldiçoando o dia que tanto me agradava, esquelético e pálido por trás da sujeira que o cobria. Era velho, ou pelo menos o tempo, que mais tarde descobri ser um cobrador ríspido e impaciente, assim o fazia parecer, e carregava uma sacola de pano quase podre e encharcada, que pingava, assim como seus cabelos, um líquido negro e grosso. Terminou de fuçar desesperançado no lixo e começou a caminhar na minha direção, trazendo consigo um cheiro forte, que nem a água que o lavava conseguiu dissipar, trôpego, e me olhando sem muita firmeza. Veio e passou, como um espírito morto e vago, ao meu lado, enquanto minha diminuta mente de criança tentava desvendar, apavorada, a visão que acabara de ter. Uma palavra vaga, uma leve lembrança de que já ouvira falar em seres assim, passou por minha cabeça e, um pouco em dúvida, pude nomear a coisa: “Mendigo...”. Formou-se então, neste momento, uma nova visão do inverno onde, enquanto eu ansiava pelo frio que me traria tardes de desenhos animados e doces, traria a algumas pessoas, e infelizmente muitíssimas outras pessoas, a dor e o sofrimento que só quem mora na rua sente com a chegada do tempo gelado.
    Hoje, anos mais tarde, ao descer do ônibus e encaminhar-me ao meu emprego, dentro de uma sala aquecida, diante de um computador e de um copo de café fervente, satisfeito com o verão que tardiamente acabou, novamente o espinho rasgou mais um pouco dentro de mim, e incomodou-me durante o restante do dia. No pequeno trajeto entre a rodoviária e o prédio onde trabalho, novamente deparei-me com um destes homens que teimosamente sobrevivem aos ataques da vida. Ao contrário do que aconteceu naquele dia, não foi o aspecto do homem sujo, tremendo por conta dos oito graus e do vento frio que praticamente o atravessava, que me assustou. O que me assustou realmente foi, horas mais tarde, quando me apercebi do fato, a frieza, ainda maior que a da manhã, com que desviei do homem e despreocupado continuei em meu caminho, absorto nos planos do feriado que se aproxima. Descobri que a criança confusa e triste, que o adolescente idealista e socialista, que o jovem adulto engajado em planos sociais congelou, quem sabe devido aos muitos invernos que passou discutindo formas de mudar a sociedade, dentro de uma sala aconchegante, entre goles de vinho e sonhos revolucionários vazios e sem sentido. Esse frio interior ainda é pior. Este é o frio que impomos às crianças e velhos que passam a noite cobertos de jornais enquanto dentro das casas aquecidas olhamos novelas, ouvimos músicas e geramos outros frios descendentes que um dia, pelo menos uma vez na vida, terão de encarar, constrangidos e confusos, um destes frutos da sociedade em que vivemos e construímos. Um destes frutos sujos, descabelados, famintos e feridos que tanto contrastam com nossos filhos bem alinhados e alimentados.
O que faremos pra mudar? Não sei, mas sei o que EU farei. Há os que oram nas igrejas, há os que criticam o governo, há os que fecham os olhos e há uma raça a qual eu quero pertencer, a raça que se doa. Que doa. Que ajuda e não finge que o problema é invisível. Há o que passa pelo mendigo revirando sua própria lixeira e ainda preocupa-se com a sujeira que o pobre irá fazer. Não quero ser este, embora esteja como ele tornando-me gelado. Temos roupas que não mais servem que estão guardadas. Temos alimento que nos sobra e jogamos aos nossos cães que comem melhor que estes que cito. Temos pernas e braços. Temos direito de voto e escolha. Temos saúde e temos tempo, pelo menos os 90 minutos do futebol que enriquece quem pouquíssimo ajuda o país que o gerou. Só não temos o calor humano, vital, que nos escapa a cada vez que nos alienamos com o pão e circo que nos é oferecido pela mídia e pelos governantes.
    Doe este inverno. Aqueça os seus sentimentos. Quando eles finalmente congelarem você estará tão morto quanto as folhas que caíram, sem cor, nos últimos dias, e será ainda mais pobre que o pobre sobrevivente que lhe pede o calor e o pão.

Diego Schirmer

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